Nós, Portugueses, Mar Adentro

Teresa Bastos | 9.º E

Em Portugal e os Portugueses, D. Manuel Clemente propõe-se delinear os traços da relação (histórico-existencial) entre o cristianismo e Portugal. E, em um dos mais belos e proféticos capítulos do ensaio, assume a parábola: O cristianismo é uma realidade ribeirinha. Mar profundo. O do Cristo nascente, na geografia que o acolhe. O que Cristo propõe. O de embarcar. Sair de si. Ir ao encontro dos outros. Ondas revoltas. Estranhas. Temíveis. Mar que mesmo os discípulos sofrem. Perante o qual quebram. “Em Jesus, o mar é apelo de liberdade. O mar torna-se assim, com Cristo e no Cristianismo, a feição do mundo e da comunhão universal (…) o cristianismo foi um mar, transformou a própria terra em mar, qual novo dilúvio onde se afogassem todos os atavismos” (pp.77/78). Mar profundo. Nós portugueses. Habitantes do mar. Nómadas de influência judaica. Evangelizadores. Destruidores. Bons e maus. Perpétuo movimento. Arriscamos. Desde o séc. XV “nunca mais deixámos de partir e às vezes – regressar. Mesmo cá dentro, embarcamos sempre (…) Mas as águas de então tinham o brilho esmeraldino de uma esperança última”(p.80).

A comparação enunciada sobre o manto infinito do oceano – e do peixe, ou melhor, mais ainda, o Ictus – é, de imediato, concretizada: “nunca a aventura portuguesa se pareceu tanto com a paixão evangélica, porque se tratava de gente cristã e porque a Esperança cabia toda em Deus”. Ao cético que apenas vê proselitismo nas palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa, introduza-se, então, o contributo de Pedro Calafate no primeiro volume de Portugal como Problema – séc. V-XVI a afirmação de um destino coletivo. Para o investigador, Professor de Filosofia na faculdade de Letras de Lisboa, a ideia de Império (português), “expressão política da unidade de sentido da história e do unilinearismo do tempo”, é, claramente, tributária da filosofia cristã da história, “condição de inteligibilidade das nossas lendas fundadoras e da génese da nossa consciência histórica”, consubstanciada em, entre outras, teses como o “universalismo”, radicado na comum “paternidade divina”; “redução de toda a matéria histórica a uma unidade de sentido e conceção unilinear do tempo”; “a escatologia, ou seja, a importância da história do futuro” (pp.50-51).

Sem o necessário entendimento de tal mundividência, a par, é certo, de um vasto conjunto outro de realidades (e interesses) económico-sociais, não se compreende a empresa portuguesa. Sim, apresentamos especificidades - mas não estamos à margem do mundo. Parecemos, às vezes, vaguear pelo mar do povo eleito – afinal, caminhamos lado-a-lado com a barca de Cristo – mas logo o estudioso nos encontra (bem) humanos. Mas corajosos. “Fomos como todos, com bravura e medo, com ciência e sorte, grandes ou mesquinhos, santos ou vilões, mas fomos. E no partir houve ainda o Evangelho. Tocaram-se as duas histórias, a portuguesa e a da Igreja, na mesma fronteira marítima e na mesma necessidade a transpor” (p.82).

Para o homem de Igreja - aqui sim, não o podemos deixar de ler nessa qualidade -, o melhor de Portugal foi o encontro com o Evangelho: a luta contra a escravatura, com profetas como Vieira (vide A morte de Colombo, de Eduardo Lourenço); na aproximação cultural, estudando línguas, da América ao Japão; adotando trajes e modos “para que a missão fosse essencial e próxima”.

Por fim, a presença europeia. A partir do texto Ecclesia in Europa, de João Paulo II, Manuel Clemente reclamará os valores cristãos como os que “estimularam o progresso da ciência, direitos humanos e democracia” e o leitor mais abrupto recordará Galileu e a Inquisição. Mas os exemplos de Clemente são claros, mesmo que não originais, razoáveis: “igualdade original de todos segundo o Génesis”, “bem como a distinção evangélica entre César e Deus” foram legados inestimáveis para o mundo em que vivemos e queremos viver, e que, aliás, demoraram demasiado a ser compreendidos e interpretados – pela Igreja, inclusivamente. Ainda com a Constituição Europeia em fundo, à época em que o livro é escrito, a exortação de que “bem será que o continente continue a reconhecer a fonte e lhe continue a aurir a seiva” (p.104). Partindo do universal sobre o humano, esse universal cristão em que se situa, Clemente constatou um português incapaz de sair de si…que é todos (ser tudo de todas as formas, reclamava Agostinho da Silva, um grande defensor da plasticidade portuguesa); percecionou uma empresa portuguesa rumo ao mar impregnada de filosofia cristã; na viagem da História, a passagem do Antigo Regime, sociedade organizada em torno do religioso, para o anticlericalismo dos séculos XVIII e XIX; viu o mar profético de Cristo, do qual saímos ao encontro dos outros; tivemos essa ousadia, corajosos mas humanos; especialmente marianos, “uma devoção nacional”; europeus que devem preservar a cultura que os formou (para lá de Atenas e Roma): o cristianismo da radical igualdade dos seres humanos e da separação entre César e Deus; portugueses religiosos, que certamente compreenderão a beleza do ecumenismo. Nómadas, sentimentais, pouco rigorosos ou pragmáticos, crentes e ousados – Portugal e os Portugueses, uma relação de quem esperamos sempre mais, mas uma relação alma com alma, mar adentro.
Pedro Miranda |Professor de EMRC


O Broas

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